sobre a presença do passado na arte.

Pretérito (Im)perfeito

O modernismo, marcado pelo pós-guerra, se caracterizou por uma vontade construtivista, não necessariamente positiva, mas que agia em busca de reverberações para o futuro. O que marcou os movimentos de vanguarda são os pensamentos e posturas assumidos. Neste sentido, os artistas, enquanto produtores simbólicos, estavam intrinsecamente ligados a um pensando acerca daquele modus social ao qual eles se opunham, ou se aliavam. Mesmo posteriormente, com o advento da idéia de desconstrução, continuava a existir ali uma necessidade de transformação, de um (re)posicionamento da arte – ainda que como antiarte.

A questão da arte-atual é ela ter-nos tornado contemporâneos de toda a história da arte, mormente da modernidade e pós-modernidade (anos 60), só que em forma de modelos (tipo, formato, que se dá à mera reprodução, ou imitação) e não ideologias. Assim, o passado se nos é apresentado como o presente já “domesticado”. Ora, as idéias de presente e passado não são construtos inventivos de intenção meramente didática, são conceitos que nos referenciam o modus sócio-ideológico de espaços-tempos anteriores aos nossos. Parece uma observação evidente, mas de implicações bastante sólidas.

Lidar com o presente é situar-se num espaço-tempo desafiadora e angustiadamente cognoscível, mas, por natureza inevitável, pouco conhecido. Tal desafio e angústia vem do inaudito social contingente que surge discretamente amalgamado com nossas próprias alterações (nem sempre perceptíveis) intelecto-emocionais. A idéia de presente é saber posicionar-se no desconforto que é aquilo que ainda desconhecemos. Presentificar o passado é, talvez, uma tentativa de tornar mais cômodo o nosso diariamente.

Deslocar o passado (apenas enquanto formato sem conteúdo) para o presente evidencia a pouca, ou quase nenhuma, disposição de (pre)ocupar-se do gerúndio que clama uma ação. Pois, mais fácil dedicar-se ao particípio, com o qual se pode ter uma relação até mesmo displicente – porque o já acontecido não há de reclamar coisa alguma. Esse tipo de importação do passado revela um desinteresse pela novidade – daí não falo do absolutamente novo, mas daquilo que é recepcionado e reescrito criativamente de modo a ganhar um caráter de originalidade.

Ora, esse passado que tem sido transportado não traz consigo o aporte semântico com e pelo o qual foi criado. As ebulições sociais preconceituosas, porque também, naquela ocasião, apenas pré-conceituais, permanecem lá atrás. Quem usufrui hoje do modelo daquele passado não tem que lidar com as tensões e significados que tal modelo, naquele momento histórico, designava. A partir das festas Ploc 80’s no Rio de Janeiro e São Paulo, e as festas Trashdance em Recife, pode-se auferir esse estado febril que é a vivência de um passado descontextualizado e sem significado. As músicas eletrônicas dos anos 80 apontadas como de “nerds”, ou “gays”, as de punk-rock para “undergrounds” e as pop-rock para “rebeldes sem causa”, são compiladas e fazem uma playlist cobiçada. Hoje dançar freneticamente nessas festas ecléticas não traz o perigo de qualquer constrangimento, porque também, destituídas dos seus contextos, já não há nenhum tipo de associação do gosto a uma tomada de posicionamento daquele momento social.

É preciso dizer que não estou aqui na defesa de um purismo, sobretudo no sentido de que os juízos de gosto musical (ou de qualquer outra natureza) devem imediatamente designar um rótulo social. Mas demonstrar que, quando qualquer passado era o presente, os juízos de gosto implicavam um posicionamento diante da sociedade que trazia consequências diversas – desde um olhar maldoso de soslaio, até a execução sumária da lei de Lynch – e que por isso mesmo a tomada de posição era antes de tudo uma atitude sócio e politicamente salutar.

Sou a favor do exercício da plena liberdade. E não entendo como papel do crítico o formular teorias que engessem o fazer artístico. Mas acredito, sim, que o crítico deve diagnosticar as construções estético-semânticas de seu tempo e procurar entender seus porquês e permitir que o processo histórico se encarregue dos para-quês (da arte). Nesse sentido, agora, de onde vejo, não penso nas importações de modelos do passado como formas ilegítimas de obras de arte – até porque, há algum tempo, já não acredito em ilegitimidade (ontológica) de uma obra de arte. Mas procuro me debruçar naquilo que essas práticas criam e que desdobramentos podem ter.

Ultimamente me pus a folhear catálogos de grandes exposições brasileiras dos últimos 8 anos e ficou difícil, para não dizer impossível, encontrar um grupo de artistas o qual possamos chamar de representante legítimo desse nosso tempo em razão de uma estética, discurso, ou mesmo posicionamento político-ideológico que nos sirva de referência. O que temos na verdade são práticas artísticas que apontam não uma referência estética, mas apenas sintomas de procedimentos estéticos que não produzem diferenciação. Assim, os nomes desses catálogos poderiam ser substituídos por outros e não necessariamente essa mudança se constituiria em impropriedade, sobretudo do ponto de vista sociológico, ou mesmo histórico. Será que essas constatações advêm de uma impossibilidade de enxergar as transformações e dessemelhanças, porque estou inserida nesse tempo? Ou, de fato, a coisa é como é: reflexo de nossa sociedade atual, displicente quanto às questões sócio-políticas, às tomadas de posição e ações coletivas construtivistas?

Ora, voltando ao que comecei dizendo, o ideário estético vanguardista era edificado a partir da sociedade e para a sociedade – inevitavelmente político. Nesse sentido, as construções estético-ideológicas fatalmente operavam transformações sociais em diversos segmentos. O mesmo não acorre na atualidade; em primeiro lugar porque não existe um conjunto de pensamento o qual possamos chamar de ideário estético (muito menos sócio-político), tampouco os poucos (quaisquer) pensamentos que surgem são compartilhados (de maneira crítica e sistemática). Em segundo, porque embora algumas obras de arte sejam criadas a partir do substrato social – há tempos o substrato de algumas obras são construtos filosóficos – não operam transformações sociais significativas (super-estrutura).

Acredito que a arte nos últimos tempos ocupou-se tanto em se auto-referenciar que os contextos politico-sociais foram paulatinamente deixados ao largo. A auto-referência em demasia, pelo menos no que diz respeito às artes visuais, que inclui essas importações de modelos passados, acabou criando construções esquizofrênicas de fortalezas da solidão. Nesse sentido, são elaborações estéticas trazidas do passado para o presente sem re-significações; há uma espécie de des-conteúdos. Daí o que fica são os abrigos mudos, feitos de passado (um mundo que não existe mais), onde quase ninguém visita dada a estranheza fria da forma visivelmente deslocada que, por isso mesmo, não produz empatia. A falta de empatia do público com essa arte contemporânea é menos a inabilidade de acessar os códigos da arte, e mais o reconhecimento de que se trata de uma construção que se volta ao passado e que não convida, no “hoje”, a um diálogo com o atual tempo-espaço.

Se ainda estivéssemos vivendo sob a égide dos “ismos”, não recairíamos em erro em chamar a atual estética de Fetichismo. Pois, esta se demonstra pouco afeita àquela vontade vanguardista de construção; muito pelo contrário, ainda embaladas pela idéia de desconstrução – não como proposição construtiva baseada no pensamento filosófico (Derrida) pela decomposição dos elementos (em princípio da escrita) – estagna a arte ao trazer do passado apenas modelos de aparências e procedimentos para fins estéticos sem nenhum tipo de re-significação; recaindo numa não-construção.

O Fetichismo estetiza partes do todo. Eis o início da obra esvaziada. E esse tipo de prática não seria de todo ruim se fosse feita de maneira consciente, deliberadamente trazida para a discussão, mesmo àquelas açodadas. Mas acredito que, pelo menos hoje, o fetichismo é o culto ao não-lugar que leva a lugar nenhum.


*Para Revista Tatuí nº 5 – Edição do Passado, 2008.