A História como Violência | Thiago Martins de Melo

“L’Europe souffre d’une vieille pathologie liée à sa vision autocentrée.”

Bertrand Badie

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. ”

Giorgio Agamben em “O que é o contemporâneo?”

A História como Violência

Os povos latino-americanos tornaram-se herdeiros de uma mirada perversa sobre a história da humanidade. A reboque da tradição europeia, insistimos em nos inserir no modo historicista-linear de contar sobre os acontecimentos humanos no qual guarda em si mesmo um modelo de hierarquias que são como fraturas porque têm como pressupostos ficções de superioridade de uma cultura sobre a outra. Ficções essas que alimentam preconceitos que nos põe em situação desequilibrada, sobretudo política, se nos pensarmos como uma grande comunidade global. No Brasil, tal modelo é replicado, como se fosse coisa natural, nos manejos ardilosos em nome de uma hegemonia econômica e política para fazer surgir e permanecer, como história oficial, fábulas que forjam o desaparecimento dos argumentos que desenham os conflitos sociais, sobretudo as lutas de classe, para dar lugar a narrativas pueris em que heróis inventados ganham forma de bustos de bronze nas praças e dão nomes às ruas e avenidas. Há nesse processo um embranquecimento de nossa história. Um desempoderamento e desejo de aniquilação, real e simbólica, das populações de origem indígena e preta formadoras da (pluri)identidade brasileira. É dentro desse contexto que o trabalho de Thiago Martins de Melo encontra forma e conteúdo. Nascido em São Luís do Maranhão, no Nordeste do Brasil, tal realidade está costurada desde as ações governamentais aos acontecimentos mais mundanos do dia a dia. As pinturas de Martins de Melo, que cada vez mais desmantelam a bidimensionalidade, extrapolam a ideia de mimese. Ao transpor para a tela tais conflitos – de uma hegemonia embranquecedora versus o desejo de empoderamento e legitimidade das culturas populares -, ele presentifica o caráter ritualístico e mágico entranhado na religiosidade sincrética cujo imaginário está repleto de deuses e semideuses protagonistas na cosmogonia de povos indígenas e africanos.

Não é possível desvencilhar a ideia de que cada construção estética diz respeito a um modo ideológico de organização de mundo. Não à toa a história da arte ocidental insiste em criar campos diferenciados de representação. Sob noções pouco interessantes, porque delimitam processos que possibilitariam a ampliação do conhecimento humano, permanecem incentivados os discursos de “centro” e “periferia”, baseados em regras, antidemocráticas, inclusive equivocados também na ideia de ‘representar’. Isso acontece porque ainda que o discurso da contemporaneidade seja “a possibilidade de todas as coisas” há um falso pressuposto de normatividade da representação que organiza uma espécie de “linguagem global”. Nesse sentido, num desejo claro de manutenção de poder, a história de arte ocidental eurocêntrica se invoca o direito de escrever a história da humanidade a partir de suas próprias noções de representação. Isso faz com que tudo que não couber nesse cânon seja considerado exótico. Tal cânon, ainda que encontre formas variáveis de manifestar-se, comumente está baseado em uma estrutura racionalista e excessivamente discursiva. A representatividade na história da arte não é outra coisa do que o mais puro interesse político de manejar os discursos de época. Cada momento histórico clama por transformações em suas formas de organização social e dos modos de pensar, sendo o agenciamento estético a maneira mais eficaz de fazê-lo (ou não fazê-lo). É preciso falar em representatividade não como figuração/mimese, nem tampouco, algo que se ‘fala’ em nome de algo ou alguém, mas elementos simbólicos em que manifestos (também) através da arte diz respeito a um modo de ser e estar no mundo. Talvez, a melhor palavra seria ‘Presentação’. Situação em que a arte passa ser um acontecimento em si e não um equivalente, ou tentativa de síntese, das coisas do mundo. Mas trazer à presença uma experiência subjetiva, ainda que, inevitavelmente, construída por processos coletivos. Nesse sentido, nenhuma experiência substitui a outra. A experiência do Outro jamais poderá ser ‘presentada’ senão por esse mesmo. Denunciando a ideia de representação, como se tem (ainda) hoje, como um lugar usurpador, autoritário e excludente.

No que consideramos contemporaneidade, não se conseguiu desenvolver um programa estético como em momentos anteriores, ainda assim, há uma repetição excessiva de formas de fazer e formas de exibir que parecem sobrepor os conteúdos criando uma espécie de ‘formalismo vulgar’. A repetição dos métodos tanto quanto o excesso discursivo em seus conteúdos acaba por criar um esvaziamento da experiência estética. Nesse sentido, fruir um trabalho de arte já não tem mais a ver com o embate do corpo em sua inteireza (perceptiva, cognitiva, intuitiva) mas um acesso quase que meramente retiniano e racionalista. A invenção da ideia de civilidade na sociedade ocidental esmagou quaisquer outros modos de ser e estar no mundo que não fosse de origem europeia. Desse modo, as formas mágicas e ritualísticas de estruturar os modos de existir foram consideradas secundárias. Espécies de submundos, sub-linguagens, que não se devem considerar na “História”. Os trabalhos de Martins de Melo nesse cenário, por muitas vezes asséptico, das artes visuais, inegavelmente cada vez mais nascidas pelo e para o mercado, invocam para si a abertura para a construção de não só uma, mais múltiplas possibilidades de (re)escrita da história das humanidades. O artista explode na tela em camadas de cores e gestos e num palimpsesto necessário, remonta nossos complexos campos de batalhas diários. A densidade dos conflitos se manifesta também no adensamento das massas de cor que se sobrepõem e justapõem em camadas narrativas. Os fluxos narrativos criados pelos “soterramentos” e “aparições” de certos personagens desconstroem toda tentativa de estabelecer hierarquias entre os enredos. O simples fato de não estabelecer uma hierarquia nas múltiplas narrativas que se entrelaçam na tela faz abrir para um outro modo de reagir e pensar formas de perceber o mundo. Não mais localizando uma janela de espaço-tempo, mas delineando uma situação histórica que fica entre o acontecimento e o mito.

Com aporte mais simbólico e narrativo, menos racional e discursivo, os primeiros embates com os trabalhos do artista são quase sempre transtornados pela impossibilidade de pontuar uma única leitura, como também de domesticar aquela experiência e fazer caber numa estrutura racional linear. Há na escolha estética, nos trabalhos de Martins de Melo, um desejo de esfacelamento dos moralismos que assombram os princípios de liberdade em seu sentido pleno. Os personagens em cena, inclusive em algumas ocasiões ele próprio, participam de um estado de polivalência sob o qual não se pode caber esteriótipos de vencedores/vencidos, vítimas/heróis. Há ali uma espécie de franqueza entre os personagens que são, ao mesmo tempo, algozes, subjugados, redentores e tiranos. O artista, nesse sentido, tira o véu de hipocrisia que comumente há nos discursos de classe. Nos jogos de poder, sempre haverá opressores e oprimidos, nenhum, por natureza, magnânimos ou déspotas. A história da humanidade estaria melhor narrada se passássemos a contá-la como A História da Violência. Nessa história caberia melhor os diversos personagens, anônimos ou não, nos enredos que construíram o mundo como o percebemos hoje. Sem heróis, seríamos capazes de compreender, sem disfarces, os impulsos humanos que anseiam pelo poder e que para desfrutá-lo são capazes de suplantar seus próprios pares.


Texto de julho de 2014-2015.

Faz parte do livro de ensaios ainda em construção “Arte contemporânea brasileira e a nova subjetividade – ensaios”

Um comentário em “A História como Violência | Thiago Martins de Melo

  1. Preciso de algumas horas (talvez muitas..) para digerir tudo isso. Parece tão óbvio que nossa história é pura e simplesmente construída com violência e nada mais. Onde começamos a romantizar?
    To me torturando levando isso para o micro… To me torturando pensando no nosso atual “mercado” [violento] de arte…
    Preciso de algumas conversas para digerir isso…

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